O Gomes do Angu

 Eu o conheci, logo no início, quando lançou o seu angu, que era então anônimo e noturno. Ele descobriu que, depois de certa hora, nada havia ali pela Praça Quinze para dar de comer aos heróis que trabalham no Rio até tarde e vão para Niterói, cansados, amarelos, sem janta.

Armou sua barraquinha, iluminou-a com um lampião a querosene e serviu um angu à baiana reforçado, coisa de sustância, num prato de ágata, pimenta à vontade.

Pegou. Vinha gente fartar-se de seu angu. Eu detesto comida baiana, odeio especificamente seu decantado angu, mas acompanhei o pai muitas vezes, que era louco por extravagâncias fora de hora.

Saíamos do Jornal do Brasil já noite alta, tudo fechado, de longe víamos seu lampião enfumaçado e sentíamos o cheiro adocicado de sua pimenta. Ao contrário do filho, o pai era de relações fáceis, tornou-se amigo dele, muitos outros fizeram o mesmo, o angu virou programa e referência.

Virou grife, também. Uma noite, enquanto levava o pai para casa, ele me contou que o Gomes não era Gomes nem baiano era, como se poderia supor. Era Vasconcelos e vagamente português, casara-se na Paraíba com uma Severina que lhe ensinara o macete do angu.

Foi desse Gomes (ou Vasconcelos) que ouvi, pela primeira vez, uma alusão à "modernidade". Ele já começara a enfrentar concorrência, gente sem imaginação copiava-lhe a barraca e o angu com aquilo que ele considerava a modernidade: o lampião não era mais a querosene, mas de carbureto, iluminava as especiarias servidas com uma luz azulada, asséptica, fria.

Ele permaneceu fiel ao lampião. A fumaça do querosene impregnava-se nos molhos, dando-lhes aquele algo mais que era sua marca, seu diferencial, sua glória. Preferiu perder o mercado, vendeu o nome que hoje é explorado por uma multinacional especializada em sanduíches medíocres e refrigerantes enlatados. Deve ter morrido pobre. Apesar de tudo, seu nome ficou na cidade, imortalizado em barraquinhas sem gosto e sem cheiro.

Carlos Heitor Cony

In: Os anos mais antigos do passado.

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